domingo, 19 de janeiro de 2025

Perguntas e respostas: psicologia vs direção espiritual sacerdotal

Escrito e publicado por Rhuan M. E. Honório, psicólogo clínico / rhuanhonorio.com.br 


A psicologia terapêutica tem a pretensão de substituir o sacerdócio católico?


Resposta:

Esta é uma questão comum a alguns católicos diante do problema da psicologia moderna. É verdade que a ética constitui um dos níveis epistemológicos da psicologia terapêutica, como explicamos neste artigo, e tudo o que um psicólogo pode fazer neste nível seria muito melhor feito por um sacerdote treinado na ética iluminada pela teologia e com suas graças de estado.

No entanto, há outra coisa de que trata a psicologia terapêutica que nunca foi disciplina da formação sacerdotal: a psicopatologia. É verdade que os sacerdotes poderiam ser treinados em psicopatologia, e também poderiam nisso ser melhores do que os psicólogos, mas haveria problemas práticos: os sacerdotes teriam tempo de acompanhar continuamente quadros psicopatológicos? São quadros que podem exigir encontros frequentes e, às vezes, encontros intempestivos. 

E ainda haveria os problemas práticos próprios de nossa época: lamentavelmente, o número de sacerdotes diminuiu, e poucos são os sacerdotes devidamente treinados na ciência prática da ética, e poucas pessoas têm acesso a estes sacerdotes, e as que têm acesso normalmente não podem tê-lo com grande frequência. Assim, se os psicólogos não podem ser uma opção para atender a certas necessidades éticas ou psicopatológicas, haverá muitas pessoas que, podendo ser ajudadas por um psicólogo, ficariam privadas de qualquer ajuda.

Além disso, ao mesmo tempo em que o número de sacerdotes diminuiu, a frequência das psicopatologias (ou de seus traços) e o número de pessoas com certas deficiências éticas básicas aumentou. Naturalmente, tudo isso é uma consequência da diminuição do número de sacerdotes, junto com a consolidação das revoluções modernas, agora especialmente da revolução marcusiana (ou ideologia woke). 

Leia: "O caráter patógeno da cultura atual", por Martín F. Echavarría

Podemos imaginar que, se vivêssemos numa cristandade, não haveria muitas pessoas vivendo fora da razão (portanto, haveria menos deficiências éticas), haveria um menor número de quadros psicopatológicos, haveria um maior número de sacerdotes atendendo às necessidades éticas da população, e assim por diante. Talvez, nesse cenário, a necessidade dos psicólogos seria minimizada. Talvez eles não existiriam, e os quadros psicopatológicos — em número muito menor em razão da ordem social e familiar próprias de uma cristandade  seriam suficientemente tratados somente pela atuação de médicos especializados.

Poderíamos imaginar tudo isso, mas não podemos controlar quais serão as necessidades do nosso tempo. Assim, parece ser de bom senso que haja psicólogos atendendo necessidades éticas (dentro de certos limites) e psicopatológicas, desde que não pensem ser como sacerdotes e estejam conscientes de seus limites e de sua falta de autoridade. Os pacientes, por sua vez, devem ter consciência de que os psicólogos não têm graças de estado para dirigir suas almas como sacerdotes. 

Naturalmente, essa resposta vale para os psicólogos treinados nas bases antropológicas realistas de Aristóteles e Santo Tomás, ou que tenham pelo menos intenções realistas e lutem para preservar o bom e velho senso comum. 

Se me perguntassem, por exemplo, de Sigmund Freud em particular, eu responderia que este sim pretendia substituir o sacerdócio católico, como explica o P. Ignacio Andereggen nesta conferência


quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

7 questões sobre a Psicologia Tomista e suas respectivas respostas

 Escrito e publicado por Rhuan M. E. Honório, psicólogo clínico / rhuanhonorio.com.br 


Rhuan M. E. Honório


Há poucos meses, alguns questionamentos sobre a psicologia tomista foram enviados a um grupo de que faço parte. São dúvidas muito recorrentes, por isso valeria a pena publicar as respostas para ajudar outros que as compartilhem.

Não pretendo ser grosseiro com esta afirmação, mas algumas questões estão mal formuladas ou baseadas em princípios equivocados. No entanto, mantê-las-ei como foram enviadas, para que a publicação seja também uma oportunidade de esclarecer esses equívocos, que são comuns.

 

1) “Em que momento (sic) da obra de Santo Tomás é possível localizar uma psicologia nos mesmos termos da abordagem que vocês propõem?”

Resposta: primeiro, esclareço aqui o que é uma “abordagem terapêutica” e aqui quais são os termos da abordagem baseada em Santo Tomás que podemos propor. É fundamental que esteja ciente do que se expõe nesses dois artigos, para que não tenha uma noção equivocada de tais termos. Dito isso, respondo: os escritos que podem contribuir ou fundamentar a prática de um psicólogo estão em diversos tratados na obra de Santo Tomás.Na suma teológica, está o tratado “De homine” (ia pars, q. 75-102) para a psicologia; para a ética, as noções gerais no início da ia-iiae e o tratado das virtudes na iia-iiae; e assim por diante. Ainda haveria textos como as Questões disputadas sobre a alma, o De malo, entre outros. Todos esses textos tratam de assuntos que os psicólogos modernos também trataram (de modo distinto, claro), porque ter uma posição sobre tais assuntos é algo inseparável da atividade de um psicólogo. 

 

2) “O que há na obra de Santo Tomás que equivale a uma psicologia em sentido amplo?”

Resposta : a primeira resposta também vale para essa questão. Aproveito para insistir na recomendação de um texto que esclarece os termos de uma abordagem baseada em Santo Tomás: “O que é a Psicologia Tomista?”. Atente-se para a distinção, que está no texto, entre “psicologia” em sentido clássico e “psicologia” em sentido moderno.

 

3) “Quais são os indícios e os dados de pessoas curadas por essa abordagem, demonstrando assim (sic) a sua eficácia e aplicação?”

Resposta : em primeiro lugar, o que a psicologia tomista faz, como qualquer outra abordagem, são seus princípios filosóficos. A aplicação de qualquer “abordagem” terapêutica se dirige ao particular, que não pode ser posto em termos universais, o que seria necessário para a reunião de dados que comprovassem a eficácia de determinada abordagem. Sendo assim, não são os “dados” que demonstram a eficácia de uma abordagem terapêutica. A psicanálise não poderia se provar eficaz por ser baseada em Nietzsche; terapia-cognitivo comportamental não poderia se provar eficaz por ser baseada no positivismo; e assim por diante. O que se pode provar eficaz mediante os dados é a aplicação de uma determinada técnica em particular, como a dessensibilização sistemática, por exemplo. Mas está enganado quem pensa que a psicologia tomista rejeita a aplicação dessa ou de outras técnicas comprovadamente eficazes mediante os "dados". A psicologia tomista rejeita o tecnicismo, mas não rejeita nenhuma técnica que se prove eficaz para seus objetivos.

 

4) “Há distinção entre pecado e transtorno mental? Se sim, como vocês separam utilizando (sic) Santo Tomás? Se não, como lidar com o fenômeno da esquizofrenia, por exemplo, e de outros transtornos que não são efeitos dos pecados?”

Resposta: não são a mesma coisa. Pecado é uma transgressão da lei divina; transtorno mental é uma condição patológica, normalmente de causa orgânica nos casos mais graves (como na esquizofrenia, na depressão endógena, no transtorno bipolar, etc.), mas que também pode ter causas chamadas “noógenas” (como na depressão chamada noógena).

 

5) “Qual a definição de psicologia tomista?”

Resposta: “O que é a Psicologia Tomista?

 

6) “Como ela lida com as outras abordagens e as descobertas científicas?”

Resposta: a psicologia tomista não rejeita nenhuma verdadeira descoberta científica, pelo contrário, incorpora qualquer descoberta científica que contribua para os seus fins. É comum encontrar certas descobertas úteis, por exemplo, nas terapias cognitivo-comportamentais, que embora sejam insuficientes por si mesmas e tenham seus problemas de princípio, apresentam algumas práticas que podem ser utilizadas de acordo com outros princípios.

 

7) “O que a faz superior às outras abordagens?”

Resposta : o que a faz superior às outras abordagens é a verdade de seus princípios filosóficos. É impossível separar a atividade psicoterápica de uma série de decisões e avaliações que exigem boa doutrina filosófica, especialmente na ética e na antropologia. Em exemplos: inevitavelmente, chegará o momento em que a negação da alma influenciará certas decisões e certas recomendações de um psicólogo adepto de uma abordagem que ignore a alma humana, o que é o caso de quase todas as abordagens modernas; inevitavelmente, uma ética ruim levará a recomendações práticas imprudentes, que contrariem o fim de operar segundo a virtude; inevitavelmente, uma má ética levará à ignorância de possíveis relações de causalidade entre certas desordens e certas condutas viciosas; e assim por diante.



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domingo, 5 de janeiro de 2025

O que é a Psicologia Tomista?

Escrito e publicado por Rhuan M. E. Honório, psicólogo clínico / rhuanhonorio.com.br 


Rhuan M. E. Honório


Nos últimos anos, popularizou-se no Brasil uma “nova” (não tão nova quanto aparenta) “abordagem” psicológica-psicoterapêutica [leia: o que é uma abordagem terapêutica?] que se basearia nos escritos de Santo Tomás de Aquino, um teólogo católico italiano do século XIII cujas obras são da mais alta importância no pensamento universal, não somente para a teologia, mas também para a filosofia.

Essa abordagem frequentemente enfrenta críticas e objeções de todos os lados, e essas objeções são frequentemente mal respondidas ou ignoradas por boa parte dos psicólogos que se identificam como tomistas. Na verdade, parece que parte dos entusiastas da psicologia tomista não entendem com clareza a posição epistemológica dessa “abordagem”. É esta uma das razões pelas quais a psicologia tomista é por vezes incompreendida ou exposta às críticas progressistas e cientificistas.

Para responder à questão que dá título a este texto, é preciso antes desfazer uma confusão que afeta toda a compreensão do assunto: ao contrário do que se imagina, psicologia (do grego psykhḗ, "alma", "mente" ou "espírito", e logía, "estudo" ou "tratado"), no sentido original e mais correto do termo, NÃO é a mesma coisa que entendemos por psicologia hoje em dia. A psicologia, na verdade, é o estudo da alma, do princípio que anima os seres vivos (inclusive animais e vegetais), com suas propriedades, potências, apetites, etc. É uma disciplina teórica, e não tem por si mesma aplicação prática, ou seja, não se ordena a reunir conhecimentos para a realização de uma psicoterapia. O que conhecemos por psicologia terapêutica, na verdade, é uma atividade prática que se serve de diversas ciências. Daí que o tratado de psicologia tomista mais importante (cujo título inspira o nome deste blog) se chame “La praxis de la psicología y sus niveles epistemológicos según Santo Tomás de Aquino”.  Podemos ilustrar: quando um psicólogo indica um exercício que visa a alteração de uma conduta considerada desordenada, se utiliza da ética para a consideração de tal conduta (a ética fornece a norma que determina que uma conduta é inadequada, viciosa, e informa a conduta virtuosa contrária); se aplica uma técnica como a dessensibilização sistemática, que é um método de exposição gradual aplicado, por exemplo, às fobias, se utiliza de um conhecimento “médico”, por assim dizer, porque visa o condicionamento, que é algo de nível mais biológico, corporal (lembremo-nos que o cérebro faz parte do corpo); quando utiliza o conhecimento dos apetites inferiores da alma para educar o paciente sobre a sua vida psíquica, se utiliza de conhecimentos da psicologia (no sentido original), que também é uma das ciências de que se serve o psicólogo para a prática da psicoterapia. Haveria outros exemplos. A ética é a ciência principal neste conjunto de ciências, porque oferece ao psicólogo as regras de aplicação para quase todas as outras.

É certo que todo psicólogo se utilizará de princípios filosóficos (bons ou maus, recebidos pelo estudo ou pelo espírito do tempo) para tratar de tais realidades, porque são realidades inseparáveis do processo psicoterapêutico. Que muitos não assumam isso em nome de uma postura cientificista, ou pior, que muitos nem saibam da filosofia por trás do que dizem, é outra questão.

Daí podemos responder: relevando a impropriedade do termo há pouco mencionada, podemos chamar psicologia tomista à psicologia terapêutica que se baseia nos princípios filosóficos do tomismo quanto à ética, à psicologia, e a qualquer outra ciência particular de que um psicólogo clínico necessite se servir para a fundamentação de sua prática. Nada impede que um psicólogo tomista se utilize de uma ideia vinda de outra escola, desde que não contradiga os princípios do tomismo. É comum encontrar boas práticas para aquela parte que anteriormente chamamos “médica” na terapia cognitivo-comportamental (TCC), por exemplo. O que se faz é retirar a prática de seu contexto filosófico original, positivista e redutivo no caso da TCC, e utilizá-la segundo a consideração tomista do homem. Isso valeria para qualquer descoberta verdadeiramente científica de qualquer outra corrente.

E se um defensor da psicologia moderna objetar com chavões como “ciência e filosofia não se misturam” ou “a psicologia se separou da filosofia”, pergunto: se um psicólogo não pode se basear em Tomás de Aquino, por que Freud podia se basear em Nietzsche, von Hartmann, etc?; por que Viktor Frankl podia se basear em Heidegger, Max Scheler e outros?; por que os terapeutas comportamentais podiam se basear nos princípios filosóficos positivistas de Comte? Há exemplos para qualquer abordagem. Não se pode separar a atividade do psicólogo da filosofia, porque uma afirmação que nega a necessidade da filosofia já é uma afirmação filosófica.

 

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Perguntas e respostas: “o que é uma abordagem terapêutica?”

 Escrito e publicado por Rhuan M. E. Honório, psicólogo clínico / rhuanhonorio.com.br


Perguntas e respostas: “o que é uma abordagem terapêutica?”


A “abordagem terapêutica” é o conjunto dos princípios filosóficos e das práticas de que um psicólogo se utiliza na aplicação da psicoterapia. Ela se divide em dois níveis: em primeiro lugar, os princípios da filosofia sustentam as práticas e fornecem todas as definições consideradas pelo psicólogo. A psicanálise de Freud, por exemplo, está baseada em nomes como Nietzsche e von Hartmann; a Logoterapia de Viktor Frankl, em Heidegger, Scheler e outros; a terapia cognitivo-comportamental no positivismo de Comte; a psicologia tomista em Santo Tomás de Aquino; etc. Cada psicólogo tem uma noção de homem (princípios antropológicos), uma noção quanto à ordem ou à desordem dos atos (princípios éticos), e assim por diante. Em segundo lugar, está o corpo de práticas e técnicas utilizado pelo profissional, e este não devem contradizer os princípios filosóficos. Um psicólogo que se baseia em Santo Tomás pode, por exemplo, utilizar técnicas de diferentes escolas com a condição de que elas sejam separáveis do contexto filosófico original e adaptáveis à consideração tomista do homem.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

Diretrizes de Pio XII para psicólogos

Publicado por Rhuan M. E. Honório, psicólogo clínico / rhuanhonorio.com.br


Fonte: Edvino Friderichs S.J. (Ed.). Mensagem de Pio XII aos médicos. Paulinas, 1958, 125-134.

 

Em discurso que ficará célebre, pronunciado ao receber, no dia 13 de abril de 1953, os membros do V Congresso de psicoterapia e psicologia clínica, Sua Santidade indicou a atitude fundamental que se impõe ao psicólogo e psicoterapeuta cristão.

São especialmente importantes essas diretrizes no campo psicológico numa era que perdeu a noção do pecado e pretende atribuir tudo a dinamismos, determinismos e mecanismos ocultos nas profundezas da alma. Contra isso pondera claramente o Papa: «A psicologia técnica e prática não pode perder de vista nem as verdades estabelecidas pela razão e pela fé, nem os preceitos obrigatórios da moral».

Pelo fim de sua exposição, emite o Santo Padre um conceito importantíssimo sobre a colaboração do médico com o sacerdote e vice-versa, dizendo: «O meio de eliminar a falta não depende só do psicólogo. Como todo o cristão sabe, consiste na contrição e na absolvição sacramental dada pelo padre. Aqui é a fonte do mal, a própria falta que é extirpada, embora o remorso continue talvez a trabalhar. Não é raro nos nossos dias que em alguns casos patológicos o padre mande o seu penitente ao médico; no caso presente o médico devia, pelo contrário, dirigir o seu cliente a Deus e àqueles que têm o poder de perdoar até a falta em nome de Deus.»

 

Sede bem-vindos, queridos filhos e filhas, que viestes de todo o mundo e vos reunistes em Roma para ouvir doutas exposições e discutir questões de Psicoterapia e de Psicologia clínica. O vosso Congresso terminou e, para garantir os seus resultados e o êxito das vossas investigações e atividades futuras, vindes receber a Bênção do Vigário de Cristo. De boa vontade, satisfazemos o vosso desejo e aproveitamos a oportunidade para vos dirigir uma palavra de exortação e dar-vos algumas diretrizes.

A ciência afirma que novas observações revelaram as camadas profundas do psiquismo humano e esforça-se por compreender estas descobertas, interpretá-las e torná-las utilizáveis. Fala-se de dinamismos, de determinismos e de mecanismos escondidos nas profundezas da alma, dotados de leis imanentes, de que brotam certos modos de agir. Sem dúvida, estes são postos em ação no subconsciente ou no inconsciente, mas penetram também no domínio da consciência e o determinam. Pretende-se dispor de processos provados e reconhecidos aptos para sondar o mistério dessas profundezas da alma, esclarecê-las e repô-las no reto caminho, quando exercem influência nefasta.

Essas questões que se prestam ao exame da Psicologia científica são da vossa competência. O mesmo se diga do emprego dos novos métodos psíquicos. Mas, uma e outra, a Psicologia técnica e a prática, saibam que não podem perder de vista nem as verdades estabelecidas pela razão e pela fé, nem os preceitos obrigatórios da moral.

O ano passado, no mês de setembro (13 de setembro de 1952), para satisfazer o desejo dos membros do Primeiro Congresso Internacional de Histopatologia do Sistema Nervoso, indicamos os limites morais dos métodos medicinais de investigação e tratamento. Baseados nessa exposição, desejávamos hoje acrescentar alguns complementos. Em poucas palavras, temos a intenção de indicar a atitude fundamental que se impõe ao psicólogo e ao psicoterapeuta cristão.

Esta atitude fundamental resume-se na fórmula seguinte: a psicoterapia e a Psicologia clínica devem, sempre, considerar o homem: 1) como unidade e todo psíquico; 2) como unidade estruturada em si mesma; 3) como unidade social; 4) como unidade transcendental, ou seja, com tendência para Deus.

 

1. O HOMEM COMO UNIDADE E TODO PSÍQUICO

A medicina ensina a olhar o corpo humano como um mecanismo de alta precisão, cujos elementos se entrosam uns nos outros e se ligam uns aos outros; o lugar e as características desses elementos dependem do todo, e são úteis à sua existência e funções. Mas esta concepção aplica-se ainda muito melhor à alma, cujas engrenagens delicadas estão unidas com muito mais cuidado. As diversas faculdades e funções psíquicas inserem-se no conjunto do ser espiritual e subordinam-se à sua finalidade.

É escusado desenvolver ainda mais este ponto. Mas vós, os psicólogos e terapeutas, deveis ter em conta este fato: a existência de cada faculdade ou função psíquica justifica-se pelo fim do todo. O que constitui o homem é principalmente a alma, forma substancial da sua natureza. É dela que deriva, em última análise, toda a vida humana; nela radicam todos os dinamismos psíquicos, com sua estrutura própria e lei orgânica. É ela que a natureza encarrega de governar todas as energias, na medida em que não tenham alcançado a sua última determinação. Deste fato ontológico e psíquico segue-se que seria afastar-se da realidade querer, em teoria ou na prática, confiar o papel determinante do todo a um fator particular, por exemplo, a um dos dinamismos psíquicos elementares, confiando assim o leme a uma potência secundária. Estes dinamismos podem encontrar-se na alma, no homem; mas não são a alma, nem o homem. São energias de intensidade considerável talvez, mas a natureza confiou a sua direção ao posto central, à alma espiritual, dotada de inteligência e de vontade, e capaz normalmente de governar essas energias. Que estes dinamismos exerçam a sua pressão sobre uma atividade não significa necessariamente que forçam a mesma. Contestando à alma o seu lugar central, negar-se-ia uma realidade ontológica e psíquica.

Não é possível, portanto, quando se estuda a relação do eu com os dinamismos que o compõem, conceder sem reservas, em teoria, a autonomia do homem, ou seja, da sua alma, e ao mesmo tempo acrescentar que, na realidade da vida, este princípio teórico aparece, o mais das vezes, derrotado ou pelo menos extremamente minimizado. Na realidade da vida, diz-se, fica sempre ao homem a liberdade de dar o seu consentimento interior àquilo que ele realiza, mas não a de o realizar. À autonomia da vontade livre substitui-se a heteronomia do dinamismo instintivo. Não foi assim que o Criador talhou o homem. O pecado original não lhe tira a possibilidade e a obrigação de se deixar guiar pela alma. Não se há de afirmar que as perturbações psíquicas e as doenças que estorvam o trabalho normal do psiquismo são o fato habitual. A luta moral para ficar no reto caminho não demonstra a impossibilidade de o seguir, nem autoriza a recuar.

 

2. O HOMEM COMO UNIDADE DE ESTRUTURA

O homem é uma unidade e um todo ordenados; um microcosmo, uma espécie de estado cuja constituição, determinada pelo fim do todo, subordina a este fim a atividade das partes segundo a ordem verdadeira do seu valor e da sua função. Essa constituição, em última análise, é de origem ontológica e metafísica, não psicológica e pessoal. Julgou-se dever acentuar a oposição entre metafísica e Psicologia. Muito errado. O próprio psíquico pertence ao domínio do ontológico e do metafísico.

Quisemos recordar-vos esta verdade para lhe ligar uma observação sobre o homem concreto, cuja estrutura interna estamos examinando. Pretendeu-se, com efeito, estabelecer a antinomia da Psicologia e da Ética tradicionais em face da Psicologia clínica e da psicoterapia modernas. A Psicologia e a Ética tradicionais têm por objeto, afirma-se, o ser abstrato do homem, o «homo ut sic», que certamente não existe em parte alguma. Sem dúvida merecem admiração a clareza e coerência lógica dessas ciências, mas sofrem de um mal de raiz: são inaplicáveis ao homem real, tal qual existe. A Psicologia clínica, ao contrário, parte do homem real, do «homo ut hic». E conclui-se: entre as duas concepções, abre-se um abismo insuperável, enquanto a Psicologia e a Ética tradicionais não mudarem de posição.

Quem estuda a constituição do homem real deve, com efeito, tomar como objeto o homem «existencial», tal qual é, tal qual o fizeram as suas disposições naturais, as influências do meio, a educação, a sua evolução pessoal, as suas experiências íntimas e os acontecimentos de fora. Existe somente esse homem concreto. E, contudo, a estrutura deste eu pessoal obedece, nos mínimos pormenores, às leis ontológicas e metafísicas da natureza humana de que falamos mais acima. Foram elas que a formaram e por isso a devem governar e julgar. A razão disto é que o homem «existencial» se identifica na sua estrutura íntima com o homem «essencial». A estrutura essencial do homem não desaparece quando se lhe ajuntam as notas individuais; nem se transforma n’outra natureza humana. Mas a lei fundamental de que se tratava há pouco, precisamente, repousa seus enunciados principais sobre a estrutura essencial do homem concreto, real.

Por conseguinte, seria errôneo fixar para a vida real normas que se afastassem da moral natural e cristã, e que se designassem com o vocábulo de «ética personalista»: esta sem dúvida receberia daquela uma certa orientação, mas nem por isso, comportaria obrigação estrita. A lei de estrutura do homem concreto não se deve inverter, mas aplicar.

 

3. O HOMEM COMO UNIDADE SOCIAL

O que até aqui temos dito refere-se ao homem na sua vida pessoal. O psíquico compreende também as suas relações com o mundo exterior, e é um trabalho digno de louvor, um campo aberto às vossas investigações, estudar o psiquismo social em si mesmo e nas suas raízes, e torná-lo utilizável para efeitos da Psicologia clínica e da psicoterapia. Procure-se, nessa questão, distinguir cuidadosamente os fatos em si mesmos da sua interpretação.

O psiquismo social pertence também à moralidade, e as conclusões da moral coincidem em grande parte com as da Psicologia e psicoterapia sérias. Mas alguns pontos há em que a aplicação do psiquismo social peca por excesso ou por defeito: é nisso que queríamos demorar-Nos brevemente.

 

ERRO POR DEFEITO

Existe um mal-estar psicológico e moral, a inibição do eu, cujas causas a vossa ciência se ocupa em descobrir. Quando essa inibição invade o campo moral, por exemplo, quando se trata de dinamismos, como o instinto de dominação, de superioridade e o instinto sexual, a psicoterapia não poderia, sem mais, tratar essa inibição do eu como uma espécie de fatalidade, como uma tirania do impulso afetivo que brota do subconsciente e escapa simplesmente à vigilância da consciência e da alma. Não se abaixe, tão facilmente, o homem concreto, com o seu caráter pessoal, à categoria do animal. Apesar das boas intenções do terapeuta, alguns espíritos delicados ressentem-se amargamente dessa degradação ao plano da vida instintiva e sensitiva. Nem se desprezem as nossas observações precedentes sobre a ordem de valor das funções e o papel da sua direção central.

Uma palavra, também, sobre o método às vezes usado pelo psicólogo para libertar o eu da sua inibição no caso de aberração no domínio sexual. Referimo-Nos à iniciação sexual completa, que nada quer ocultar, nem deixar na escuridão. Não há nisso uma excessiva e perniciosa estima do saber? Existe também uma educação sexual eficaz, que, com toda a segurança, ensina, na calma e objetividade, o que o jovem deve saber para se guiar a si mesmo e tratar com o seu meio. Para o resto, há de insistir-se, na educação sexual como aliás em toda educação, sobre o domínio de si mesmo e a formação religiosa. A Santa Sé publicou normas a este respeito pouco depois da Encíclica de Pio XI sobre o matrimônio cristão. (S.C.S. Off. 21 de março de 1931); Acta Ap. Sedis, a XXII 1931, p. 118). Essas normas não foram retiradas, nem expressamente, nem «via facti».

O que acabamos de dizer da iniciação inconsiderada para fins terapêuticos vale também para certas formas de psicanálise. Não se devia considerá-las como o único meio de atenuar ou curar perturbações sexuais psíquicas. O princípio repisado, de que as perturbações sexuais do inconsciente, como todas as outras inibições de origem idêntica, não podem ser suprimidas senão pela sua evocação à consciência, não tem valor se é generalizado indiscriminadamente. O tratamento indireto tem também a sua eficácia e, muitas vezes, é perfeitamente suficiente. No que diz respeito ao emprego do método psicanalítico no domínio sexual, a Nossa alocução de 13 de setembro, citada mais acima, já indicou os seus limites morais. Com efeito, não se pode considerar, sem mais, como lícita, a evocação à consciência de todas as representações, emoções e experiências sexuais que dormiam na memória e no inconsciente e que se atualizam assim no psiquismo. Se se ouvem os protestos da dignidade humana e cristã, quem ousaria afirmar que esse processo não traz consigo nenhum perigo moral, quer imediato, quer futuro, ao passo que, embora se defenda a necessidade terapêutica de uma exploração sem limites, esta necessidade, de resto, não está provada?

 

O ERRO POR EXCESSO

Consiste em salientar a exigência de um abandono total do eu e da sua afirmação pessoal. A este propósito, queremos frisar dois pontos: um princípio geral e um ponto de prática psicoterapêutica.

De certas explicações psicológicas, nasce a tese de que a extroversão incondicionada do eu constitui a lei fundamental do altruísmo congênito e dos seus dinamismos. É um erro lógico, psicológico e ético. Existe uma defesa, uma estima, um amor e serviço de si mesmo não só justificados, mas até exigidos pela Psicologia e pela Moral. É uma evidência natural e uma lição da fé cristã (cf. S. Thomas, S. Th. II-II, q. 26, a. 4 in c.)! O senhor ensinou: «Amarás ao teu próximo como a ti mesmo» (Mc. 12, 31). Cristo propõe, portanto, como regra do amor do próximo, a caridade para consigo mesmo, não o contrário. A Psicologia aplicada desprezaria esta realidade se qualificasse toda a consideração do eu de inibição psíquica, de erro e de regresso a uma fase de desenvolvimento anterior, sob pretexto de que ela se opõe ao altruísmo natural do psiquismo.

O ponto de prática psicoterapêutica, que anunciamos, diz respeito a um interesse essencial da sociedade: a salvaguarda dos segredos que o uso da psicanálise põe em perigo. Não se exclui absolutamente que um fato ou um conhecimento secretos e reprimidos no subconsciente provoquem conflitos psíquicos sérios. Se a psicanálise descobrir a causa desta perturbação, há-de querer, segundo o seu princípio, evocar completamente este inconsciente e remover o obstáculo. Mas segredos há que é preciso absolutamente ocultar, mesmo ao médico, e até mesmo a despeito de inconvenientes pessoais graves. O segredo da confissão não pode ser revelado; o segredo profissional também não pode ser comunicado a outrem, nem sequer ao médico. Recorre-se ao princípio: «Ex causa proportionate gravi licet uni viro prudenti et secreti tenaci secretum manifestare». Por uma razão proporcionadamente grave, é lícito manifestar um segredo a um homem prudente e de absoluta confiança, que garanta o sigilo). O princípio é exato nos justos limites, para algumas espécies de segredos. Não convém usá-lo indiscriminadamente na prática psicanalítica.

Do ponto de vista da moralidade, do bem comum em primeiro lugar, o princípio da discrição no uso da psicanálise não pode ser suficientemente enfatizado. Trata-se, evidentemente, em primeiro lugar, não da discrição do psicanalista, mas da do paciente, que, muitas vezes, não possui de forma alguma o direito de dispor dos seus segredos.

 

IV. O homem como unidade transcendental, com tendência para Deus

Este último aspecto do homem introduz três questões que não queríamos deixar de ter em conta.

Em primeiro lugar, a investigação científica chama a atenção para um dinamismo que, enraizado nas profundezas do psiquismo, impeliria o homem para o infinito que o ultrapassa, não fazendo-o conhecer, mas através de uma gravitação ascendente, proveniente diretamente do substrato ontológico. Vê-se, nesse dinamismo, uma força independente, a mais fundamental e a mais elementar da alma; um impulso afetivo que leva imediatamente para o Divino, como a flor, sem o saber, se abre à luz e ao sol, ou como a criança respira inconscientemente, desde que nasceu.

Esta afirmação reclama, desde já, uma observação. Se se declara que este dinamismo está na origem de todas as religiões e que manifesta o elemento comum a todas, Nós sabemos, por outro lado, que as religiões, o conhecimento de Deus, natural e sobrenatural, e o seu culto, não derivam do inconsciente ou do subconsciente, nem de um impulso afetivo, mas do conhecimento claro e certo de Deus, por meio de sua revelação natural e positiva. É a doutrina e a fé da Igreja, desde a palavra de Deus no livro da Sabedoria e na Epístola aos Romanos até a Encíclica «Pascendi Dominici gregis» do Nosso Predecessor São Pio X.

Posto isto, há ainda a questão deste misterioso dinamismo. Podia-se dizer, a este respeito, o seguinte: não faz falta, em verdade, acusar a Psicologia profunda se ela se apropria do conteúdo do psiquismo religioso, e se procura analisá-lo e reduzi-lo a sistema científico, mesmo que essa investigação seja nova e a sua terminologia não se encontre no passado. Lembramos este último ponto porque, facilmente, se criam equívocos quando a Psicologia atribui um sentido novo a expressões já em uso. De ambas as partes, é preciso prudência e reserva, para evitar falsas interpretações e tornar possível uma compreensão recíproca.

Pertence aos métodos da vossa ciência esclarecer as questões da existência, da estrutura e da maneira de agir deste dinamismo. Se o resultado fosse positivo, não se devia declará-lo inconciliável com a razão ou com a fé. Demonstraria apenas que o «esse ab alio» é também, até nas suas raízes mais profundas, um «esse ad alium», e que a palavra de Santo Agostinho: «Fizeste-nos para Ti e nosso coração está inquieto enquanto não descansar em Ti». «Fecisti nos ad te; et inquietum est cor nostrum, donec requiescat in te» (Conf. 1. I, c. n. 1), encontra uma nova confirmação até no mais íntimo do ser psíquico. Tratar-se-ia, mesmo, de um dinamismo que interessa a todos os homens, a todos os povos, a todas as épocas e a todas as culturas. Que auxílio valioso para a investigação de Deus e para a sua afirmação!

Às revelações transcendentais do psiquismo pertence também o sentimento de culpabilidade, a consciência de ter violado uma lei superior de que todavia se reconhecia a obrigação: consciência que pode tornar-se sofrimento e até perturbação psíquica.

A psicoterapia aborda aqui um fenômeno que não é da sua competência exclusiva, pois é também, se não principalmente, de caráter religioso. Ninguém contestará que pode existir, e não é raro, um sentimento de culpabilidade irracional, doentio até. Mas pode-se ter igualmente consciência de uma falta real que não foi expiada. Nem a Psicologia nem a Ética, possuem critério infalível para os casos especiais, pois o processo de consciência que gera a culpabilidade tem uma estrutura muito pessoal e sutil. Mas, em todo caso, é certo que nenhum tratamento puramente psicológico curará a culpabilidade real. Mesmo que o psicoterapeuta a conteste, de muita boa fé talvez, ela subsiste. Embora o sentimento de culpabilidade seja removido por intervenção médica, por autossugestão ou persuasão alheia, a falta fica; e a psicoterapia enganar-se-ia e enganaria os outros se, para apagar o sentimento de culpabilidade, afirmasse que a falta já não existe.

O meio de eliminar a falta não é puramente psicológico. Como todo cristão sabe, consiste na contrição e na absolvição sacramental dada pelo padre. É a fonte do mal, a própria falta que é extirpada, embora porventura o remorso continue a trabalhar. Não é raro, nos nossos dias, que em alguns casos patológicos o padre mande o seu penitente ao médico. No caso presente, o médico devia, pelo contrário, dirigir o seu cliente a Deus e àqueles que têm o poder de perdoar a falta mesma, em nome de Deus.

Uma última observação a propósito da orientação transcendental do psiquismo para Deus: o respeito de Deus e da sua santidade deve sempre refletir-se nos atos conscientes do homem. Quando estes atos se afastam do modelo divino, embora sem falta subjetiva do interessado, contradizem todavia o seu fim último. Eis o motivo por que o que se chama «pecado material» é uma coisa que não deve ser, e constitui, por conseguinte, na ordem moral, uma realidade que não é indiferente.

 

PERANTE O PECADO, NENHUMA NEUTRALIDADE

Uma conclusão resulta para psicoterapia: ela não pode permanecer neutra perante o pecado material. Pode tolerar o que, no momento, é inevitável. Mas deve saber que Deus não pode justificar esta ação. Muito menos ainda pode a psicoterapia dar ao doente o conselho de cometer tranquilamente um pecado material, porque o fará sem falta subjetiva, e este conselho seria também errado se tal ação devesse parecer necessária para a serenidade psíquica do doente e, por conseguinte, para efeitos de cura. Nunca se pode aconselhar uma ação consciente que seria uma deformação, não uma imagem da perfeição divina.

Eis o que julgamos dever expor-vos. De resto, ficai certos de que a Igreja acompanha, com a sua ardente simpatia e com os melhores votos, as vossas investigações e a vossa prática médica. Trabalhais num terreno muito difícil. Mas a vossa atividade pode marcar preciosos resultados para a medicina, para o conhecimento da alma em geral e para as disposições religiosas do homem e seu desenvolvimento. Que a Providência e a graça divina alumiem a vossa estrada! Com penhor, damos-vos, com paternal benevolência, a Nossa bênção apostólica.

 

 

Moral e religião em Freud

Publicado por Rhuan M. E. Honório, psicólogo clínico / rhuanhonorio.com.br


P. Ignacio Andereggen

Tradução: Rhuan M. E. Honório


Vocês poderiam se perguntar por que um autor de um livro sobre espiritualidade (e que escreve acerca de Santo Tomás) estuda Freud. Creio que a resposta se encontra facilmente se observamos o clima cultural que nos rodeia, e se observa também na vida de muita gente. Todos sabemos que, na argentina, é comum recorrer aos psicólogos para resolver a todos os tipos de problemas, principalmente os problemas mais profundos. Mas os problemas mais profundos são justamente os problemas espirituais. Por isso, não é incoerente que alguém que trata acerca da espiritualidade se ocupe da figura de Freud, porque Freud elabora uma doutrina que alcança diretamente o nível espiritual. Mas em que sentido o veremos? Para dar uma resposta coerente, contundente e profunda aos problemas que encaramos no mundo contemporâneo, é necessário resolver, do ponto de vista teórico, os problemas encontrados nas filosofias e nos pensamentos dominantes na cultura contemporânea. Todos sabemos que Freud, nesse sentido, é um autor principal.

É muito difícil que, no mundo contemporâneo, um homem não conheça Freud e, ao menos genericamente, sua psicanálise. Também é muito difícil que, no nosso ambiente, não encontremos pessoas que foram determinadas por este tipo de pensamento, inclusive pessoas que foram submetidas a psicoterapias freudianas. Por outro lado, o influxo cultural de Freud é muito amplo e não se reduz ao âmbito da Psicologia. Há razões intrínsecas para isto: Freud não pretendia construir uma doutrina meramente psicológica, mas propor uma completa “filosofia de vida”, isto é, queria dar uma explicação profunda, o que é próprio da Filosofia, aos fenômenos humanos mais importantes, quer no nível individual, quer no nível social. Freud queria explicar a origem da moral, a origem da cultura, a origem da religião, a origem da Filosofia. Estas explicações não se reduzem, portanto, ao âmbito prático-terapêutico, senão que são explicações teóricas, que pretendem ir aos fundamentos da vida humana, isto é, ao que constitui a vida humana como tal.

Freud viveu entre o século XIX e o século XX. De alguma maneira, Freud é uma ponte entre as características culturais daquele e deste século. No século XIX, Freud assimilou especialmente o pensamento cientificista, principalmente a concepção evolucionista de Darwin. Por outro lado, assimilou, desde o ponto de vista filosófico, o ponto de chegada e de dissolução do idealismo alemão, que se encontra especialmente na filosofia de Nietzsche. Freud está profundamente influenciado por Nietzsche. Por outra parte, encontramos em Freud o influxo de David Friedrich Strauss, que é um autor de derivação hegeliana. Além disso, Freud foi aluno de um famoso filósofo que se chamava Franz Brentano, padre dominicano que abandonou o sacerdócio e a vida religiosa. Freud se impressionou profundamente com as explicações filosóficas de Brentano. Portanto, nos encontramos diante de um autor que apresenta a confluência de múltiplas formas de conhecimento, determinadas pelo clima cultural da época. Por outro lado, Freud recebe diretamente o influxo da filosofia kantiana, que é anterior ao século XIX. Para entender Freud, é fundamental conhecer a doutrina de Kant.

Em Freud, encontramos uma elaboração (filosófica) de certos dados que têm um ponto de apoio nas teorias da ciência próprias do século XIX, mas que não se reduzem simplesmente ao âmbito da ciência positiva, nem da medicina, e nem sequer da Psicologia. Freud pretende explicitamente construir uma doutrina que não é meramente psicológica, mas que abarca o sentido da vida humana em sua última profundidade. A doutrina de Freud é muito complexa, mas podemos abordá-la a partir de uma obra que apresenta diretamente o tema que queremos tratar nessa reflexão: a relação entre a moral e a religião. A obra de Freud mais importante, determinante e influente no tempo posterior se denomina Totem e Tabu, de 1912, praticamente dez anos depois que Freud publicara sua primeira grande obra teórica, A interpretação dos sonhos. Esse livro de 1912 trata diretamente dos problemas mais profundos da vida humana. Eis o nome completo da obra: Totem e Tabu: Alguns pontos de concordância entre a vida mental dos selvagens e dos neuróticos. Os neuróticos do mundo contemporâneo a Freud, isto é, os neuróticos sofisticados da cultura centro-europeia (que tinha seu centro em Viena, onde vivia Freud) reproduziriam, de uma maneira restrita, um passo da evolução geral da vida, desde a animalidade até a humanidade, no mesmo sentido que havia explicado Darwin. Segundo Freud, observando um neurótico atual, entenderíamos como, no aspecto anímico, se deu a passagem da evolução do animal ao homem. Considerando a evolução, entenderíamos melhor o que significa ser neurótico na atualidade.

Vejamos um texto tomado diretamente do prólogo de Totem e Tabu: «Os dois temas principais que dão nome a este pequeno livro, o totem e o tabu, não estão tratados de maneira igual. A análise do tabu se apresenta como um ensaio de solução acabado e certo, que esgota o problema. A indagação sobre o totemismo, por sua vez, se limita a declarar aquilo que a abordagem psicanalítica é capaz de aportar no momento, a fim de esclarecer os problemas relativos ao totem. Essa diferença se deve ao fato de que o tabu segue existindo entre nós. Ainda que expresso de uma forma negativa e dirigido a conteúdos diferente, não é outra coisa, por sua natureza psicológica, que o imperativo categórico de Kant, que opera de uma maneira compulsiva e desautoriza qualquer motivação consciente. O totemismo, por sua vez, é uma instituição religiosa e social alheia ao nosso sentido atual, e que, na realidade, caducou há muito tempo e foi substituída por novas formas.» O totem, para Freud, significa a religiosidade. Nessa obra, Freud pretende demonstrar que a origem da religião tem seu princípio em uma espécie de horda primitiva de homens que mataram seu pai para ficar com todas as mulheres dele. Quando os homens primitivos fizeram isto, o celebraram realizando um banquete. A este banquete, Freud dá o nome de “banquete totêmico”, porque a figura do pai é representada nesse banquete por meio de um totem, uma espécie de estátua primitiva que significaria o pai, e especialmente o órgão sexual deste pai. Isto seria, de acordo com Freud, a origem de toda a religiosidade posterior. Para Freud, como veremos em seguida, toda a religiosidade tem por sentido celebrar o pecado original destes irmãos primitivos. Este pecado original é constitutivo da vida social destes irmãos, e também constitutivo da vida individual. E isso até chegar ao cristianismo, no qual, ainda de acordo com Freud, se celebra, de uma maneira consciente, o pecado original em toda a sua extensão. O pecado original que, para ele, não é outra coisa que não matar a Deus e se colocar no lugar de Deus. Para Freud, Cristo é aquele que mata a Deus e se põe no lugar de Deus, e a eucaristia é a celebração do pecado original representado em Cristo, pelo qual a humanidade se constitui e pelo qual o individuo cobra sua própria individualidade, por oposição ao pai.

O tabu é a proibição. Freud toma o tema do tabu dos estudos antropológicos da sua época. Nesse livro, por exemplo, começa tratando acerca dos aborígenes australianos. Para Freud, todos os povos primitivos teriam características psíquicas similares que perduram em estados posteriores da evolução humana. Os neuróticos atuais seriam aqueles homens nos quais aparece, de uma maneira reduzida e restrita, aquilo que se deu na evolução anterior da humanidade. Assim, o neurótico seria uma pessoa que não evoluiu completamente e que, portanto, apresenta algum aspecto primitivo na sua personalidade. Para Freud, a neurose não é alheia à vida normal. Pelo contrário, a vida normal está constituída pela neurose, mas elaborada em um universo superior, segundo um fenômeno denominado sublimação, que seria a base de todos os fenômenos sociais e culturais, e que seria, radicalmente, a base da elaboração mental que constitui a razão. A razão, segundo Freud, não é outra coisa que não o fruto de uma neurose elaborada, porque a neurose não é considerada por ele como algo merecedor de um juízo moral negativo, mas como uma luta de forças que constitui o humano enquanto tal.

Diz Freud que o tabu perdura até os nossos dias: isto significa que a moral dos povos civilizados (que para Freud são os cristãos europeus de sua época), fruto de proibições impostas no princípio da evolução da humanidade, perdura. Essas proibições teriam um sentido aparentemente mais racional que a religiosidade, e constituiriam a base da racionalidade. Tomando o vocabulário de uma época posterior do pensamento de Freud, poderíamos dizer que o tabu corresponde à elaboração do ego, e o totem corresponde ao id, que é o fundo de onde surgem todas as forças psíquicas. O tabu corresponde ao ego, como dissemos, e o ego é uma espécie de desdobramento psíquico do id, que é a fonte de todo o psiquismo, como que continuando a evolução da vida, que é considerada por Freud de uma maneira única. Recordemos que não há pensamento metafísico em Freud, porque Freud é kantiano, e Kant elimina a metafísica, ao menos como a consideramos segundo a tradição, isto é, como ciência que alcança o imaterial, que alcança a substância, como dizia Aristóteles. Para Freud, não há substância particular, não há entes que sejam constituídos pelo ser no sentido profundo. Para Freud, todo o bem da vida e a própria vida não são outra coisa que não uma elaboração da matéria. O totem, então, representa a vida que brota desde baixo, e o tabu representa uma força que se manifesta como racionalidade, mas é contrária à vida. Esta força, no entanto, brota da própria vida: a vida é contraditória, portanto. Com isso, Freud formula (e o encontramos na mesma obra, Totem e Tabu) a lei fundamental da vida psíquica, que é a ambivalência, e isso quer dizer que um fenômeno psíquico significa algo e ao mesmo tempo significa o oposto. O amor implica o ódio. Para Freud, sendo assim, a concepção de tabu (que corresponde à moralidade), nos povos civilizados, não é outra coisa que não o imperativo categórico de Kant, isto é, que a moral deve ser entendida da mesma maneira que Kant a entendeu. A moral na psicanálise é a moral kantiana. Mas Freud pretende superar a moral kantiana, porque a considera unilateral e repressiva, e a verdadeira moral não guardaria a vida, mas permitiria o “livre” jogo entre o fluir da vida e a força racional contrária. Este “livre” jogo (que na realidade não é livre, pois Freud segue a Schopenhauer e não considera que a vontade seja livre) é como uma imitação da liberdade, possibilitada pela oposição entre a racionalidade e os instintos que surgem do fundo da vida material. É deste choque que a psicanálise se ocupa e, mais ainda, trata de favorecê-lo, institucionalizá-lo e convertê-lo, de maneira sofisticada e elaborada, no mais profundo que há na vida humana. Dito com outras palavras: se trata de reelaborar a neurose não para que deixe de ser neurose, mas para que seja uma neurose superior, compreendida, assimilada e favorecida. Freud realiza este “projeto” como toda a sua doutrina, e é por isso que diz em algumas obras que é preciso ser uma pessoa normal para ser “psicanalisada”. Uma pessoa enferma psiquicamente não poderia ser “psicanalisada”, pois seria preciso ser uma pessoa com um certo equilíbrio e um certo sentido da moralidade. Tudo isto implica dizer que a psicanálise não é fundamentalmente um método terapêutico, mas uma espécie de sabedoria que substitui a metafísica, que é a sabedoria no sentido tradicional, desde Aristóteles e Platão. A psicanálise seria uma interpretação total da vida e da realidade, e por isso corresponde a uma espécie de falsa espiritualidade, pois espiritualidade inclui não só a Teologia, mas também a Filosofia. É certo que Freud não é religioso, mas somente um estudioso, do seu próprio modo, da religião, e por isso, propriamente falando, não há Teologia em Freud, mas somente uma filosofia.

Totem e Tabu foi rapidamente traduzido ao hebraico. Freud era judeu e recebeu uma educação religiosa de seu pai, mas também recebeu todo o influxo positivista e iluminista do século XIX. Diz o prólogo à edição hebraica: «Nenhum dos leitores deste livro poderá colocar-se com facilidade na situação afetiva do autor, que não compreende a língua sagrada e está completamente alheio à religião paterna – e a qualquer outra religião –; que não pode simpatizar com ideais nacionalistas, mas nunca desmentiu o pertencimento a seu povo, pois sente que sua peculiaridade é de judeu e não deseja mudá-la [Isto é, Freud se proclama judeu apesar de negar esta e qualquer outra religião]. Se lhe perguntassem: “Mas o que ainda há de judeu em ti se renunciaste a todas essas relações de comunidade com teus com compatriotas?”, ele responderia: “Muita coisa ainda, provavelmente o principal” [Esta é uma resposta misteriosa. O que é o principal de ser judeu? Para ele não é a religião, pois ele já a abandonou e é ateu]. Mas, no momento, ele não poderia formular essa característica essencial com palavras claras. Mais tarde, certamente haverá uma ocasião em que ela será acessível à compreensão científica. Assim, para tal autor, constitui uma experiência particularíssima que seu livro seja traduzido para a língua hebraica e colocado nas mãos de leitores para os quais esse idioma histórico é uma língua viva. Um livro que, além disso, trata da origem da religião e da moralidade, mas que não conhece nenhum ponto de vista judaico, não faz nenhuma restrição em favor do judaísmo. Mas o autor espera coincidir com seus leitores na convicção de que a ciência sem preconceitos não pode permanecer estranha ao espírito do novo judaísmo». Que é este novo judaísmo? Para Freud, há uma religião judaica que deve ser abandonada. Em relação à religião judaica tradicional, Freud afirma que o cristianismo é superior [de acordo com o critério que diremos em seguida]. Ao final de sua produção, em 1939, publicou um livro chamado Moisés e a religião monoteísta, no qual há a mesma doutrina dita acima. Que é o próprio do povo judeu para Freud? É próprio do povo judeu sentir culpa por ter matado a Deus. E o próprio do povo cristão, ainda segundo Freud, é que não sinta culpa por ter matado a Deus, pelo contrário, que se sinta orgulhoso de ter matado a Deus e de ter se colocado no lugar dele. Isto é o que Cristo fez, de acordo com Freud. Lê-se ao final de Totem e Tabu: «Não pode haver dúvida de que no mito cristão o pecado original foi um pecado cometido contra o Deus-Pai. Se, entretanto, Cristo redimiu a humanidade do peso do pecado original pelo sacrifício da própria vida, somos levados a concluir que o pecado foi um homicídio. A lei de talião, que se acha tão profundamente enraizada nos sentimentos humanos, estabelece que um homicídio só pode ser expiado pelo sacrifício de outra vida: o auto-sacrifício aponta para a culpa sanguínea. E se este sacrifício de uma vida ocasionou uma expiação para com o Deus-Pai, o crime a ser expiado só pode ter sido o homicídio do pai». Aqui, encontramos um ponto de apoio fundamental para entender o essencial da doutrina freudiana: Cristo é o super-homem, e representa o mais evoluído da humanidade, isto é, aquele super-homem de Nietzsche. Em que se constitui o super-homem? O super-homem se constitui pela autoafirmação, isto é, por aquilo que cristianamente chamaríamos soberba. Para Nietzsche, que inspira secretamente a Freud, o homem é homem quando se autoafirma, e se autoafirma às custas dos demais: isto é a essência da (nova) moral, segundo Nietzsche. Isto é a inversão do cristianismo: se o cristianismo diz “felizes os que choram, os pobres, os que têm fome e sede de justiça”, Nietzsche diz que isto é a moral dos escravos, não a moral dos homens livres, dos nobres, dos guerreiros, dos que se impõem. Freud assimilou a doutrina nietzschiana e fez dela o centro de sua própria doutrina acerca da evolução psíquica: a evolução psíquica seria autoafirmar-se, separando-se daquele que lhe tira a liberdade, que é o pai. O complexo de Édipo é o ódio do pai que acontece ao mesmo tempo em que se o ama. Cristo, para Freud, é o homem que superou o complexo de Édipo por excelência, separando do Pai por excelência, que é Deus. Por isso, no método psicanalítico, a referência ao pai em uma pessoa individual é, no fundo, uma referência a Deus, e separar-se do pai é separar-se de Deus, ao mesmo tempo em que se o ama.

O método hermenêutico de Freud, para aquele que conhece as sagradas escrituras, é muito estranho: Freud interpreta o novo testamento segundo o antigo testamento, e o antigo testamento segundo a lei de talião. Isto é, inverte a ordem autêntica da revelação, porque o antigo testamento foi revelado por Deus justamente como superação da falta de justiça da lei de talião, e o novo testamento é a lei da graça, é a lei do amor, que supera o antigo testamento. Para Freud, a vida de Cristo deve ser interpretada ao contrário, pela lei de talião. Para entender o que fez Cristo quando morreu na cruz, deveríamos aplicar a lei de talião, o que implicaria dizer que Cristo se satisfez pela morte (assassinato) do Pai, e só poderia fazê-lo suicidando-se. De acordo com Freud, Cristo se fez Deus e ideal da humanidade quando se suicidou, porque, a partir disso, Cristo teria se reconciliado com Deus.

Evidentemente, tudo isso é uma completa distorção do pensamento e da revelação cristã e, mais ainda, é uma distorção diabólica, pois apresenta todas as características do espírito diabólico: é o sentido da mentira. Cada afirmação das sagradas escrituras está deturpada e colocada em uma ordem lógica pervertida. Deduzir que a morte foi suicídio é uma perversão; deduzir que a morte de Cristo foi um roubo do lugar de Deus é uma perversão, etc. Constituir o “assassinado do Pai” como centro da doutrina cristã é a perversão fundamental. Para Freud, todo o cristianismo, que é o ponto superior da evolução da humanidade, é a reproposição consciente do assassinato do Pai. Por isso, prossegue Freud: «Na doutrina cristã, assim, a humanidade estava reconhecendo da maneira mais indisfarçada o ato primeiro culpado, uma vez que encontraram a mais plena expiação para ele no sacrifício desse filho único». Isto é, a doutrina cristã seria a confissão orgulhosa e consciente do pecado original, e o cristianismo seria a atualização do pecado original, que seria a sanha que constituiria a humanidade, ao longo do tempo. Esse pecado original se daria de uma maneira primitiva [a horda primitiva proposta por Freud] e de uma maneira elaborada na civilização contemporânea: isso seria o núcleo da civilização contemporânea.

A reconciliação com o pai seria muito mais radical, porque, de maneira simultânea, este sacrifício produziria a total renúncia à mulher, que seria a causa da sublevação contra o pai. Para Freud, os homens primitivos tiveram uma motivação inferior para assassinar o pai, e esta motivação foi ficar com as mulheres do pai. Esta motivação seria inferior porque, para Freud, a mulher representa um estado inferior da evolução. Em que Freud estava pensando? Freud estava pensando nos sacerdotes católicos, que não se casam. Freud disse diversas vezes que tinha bom motivos para não casar-se. Cristo é identificado com o sacerdócio, porque o sacerdote representa a Cristo. Cristo teria matado o Pai, roubando seu lugar, sem necessidade das mulheres. E Freud o dizia de uma maneira meramente “racional”, não por um motivo inferior, como é o desejo sexual. Nesse ponto, a fatalidade psicológica da ambivalência reclama seus direitos. Vimos que a lei fundamental da vida humana, para Freud, é a ambivalência, que representa esta contradição fundamental. No ato mesmo de oferecer ao Pai a maior expiação possível, o Filho também alcança a meta de seus desejos contra o próprio Pai. Ele mesmo se tornaria Deus no lugar do Pai. Isto é, Cristo teria se colocado no lugar de Deus. Para Freud, a religião do Filho subjuga a religião do Pai. Vimos no princípio desse livro que Freud chamava a religião judaica de religião paterna: a religião do Pai seria a religião judaica, e a religião do Filho seria o cristianismo, isto é, a religião judaica tradicional seria uma religião inferior ao cristianismo, porque é uma religião na qual se sente culpa por se ter matado a Deus. Os cristãos teriam matado a Deus e não sentiriam culpa por isso, porque o cristianismo, em sua essência, seria a religião do homem que se faz Deus. Para Freud, o cristianismo não teria um sentido sobrenatural e não teria um sentido de culto divino, reconhecendo a Deus como criador de todas as coisas, senão que teria um sentido de aperfeiçoar a dignidade de homem, que é o que se veria, por excelência em Cristo. O cristianismo, portanto, teria substituído o judaísmo, e o antigo banquete totêmico teria sido reanimado como comunhão. Agora, os irmãos consumiriam a carne e o sangue do Filho. Já não haveria Pai. Os irmãos se santificariam pelo consumo e se identificariam com o Pai. Segundo Freud, a celebração da missa seria a atualização do assassinato do pai e do banquete que, pelo assassinato do pai, a horda de homens primitivos celebrou. A visão de Freud identificava o banquete totêmico com o sacrifício animal, com o sacrifício divino e com a Eucaristia cristã. Para Freud, todas as religiões fariam a mesmo. As religiões teriam uma ordem evolutiva: primeiro, fazia um banquete totêmico; depois, sacrificavam animais; depois, matavam um homem; e depois, celebrariam a eucaristia. De acordo com Freud, tudo isso é a mesma coisa e há uma identidade em todas as formas de religiosidade. Em todas essas cerimônias solenes há o efeito continuado daquele crime. Isto é, para Freud, a religião tem um sentido escondido, um sentido que poderíamos denominar místico [místico no sentido de “oculto”, “escondido”, diabólico, não místico no sentido da autêntica mística cristã]: a religiosidade se transforma em uma espécie de religião diabólica, que é a religião do homicídio, do ódio, que é o que está escondido como mais profundo e constitutivo da vida psíquica, porque a evolução, da animalidade à plena humanidade, se constitui justamente por esta força negativa que se opõe à vida e surge, ao mesmo tempo, da vida. Esta força negativa teria formas cada vez mais sofisticadas, que teriam seu ponto culminante na racionalidade que se expressa nas distintas formas da vida cultural. Por isso, se por uma parte a moral, entendida no sentido kantiano, é aquilo que está mais imediatamente presente nas civilizações e que as constitui, por outro lado, por trás da moral, há uma força misteriosa [demoníaca], que é o que dá força à moral. A força moral dependeria da força da “religião”, que se expressaria como negação, como homicídio, como pecado, como soberba, como orgulho. O pecado seria motivo de orgulho, não de culpa.

Como se coloca o método psicanalítico frente a esta explicação? Há diversos modos de entender esta relação que não captam adequadamente sua profunda unidade. Por exemplo: classicamente, encontramos a doutrina de Roland Dalbiez em O método psicanalítico e a doutrina freudiana, que consiste em dizer que o método psicanalítico tem sua eficácia e deve ser separado da doutrina mentirosa de Freud [separação de método e doutrina]. Maritain disse algo semelhante em suas conferências na Argentina. Estes propunham que os delírios e os disparates da doutrina filosófica fossem deixados de lado e que o método fosse assumido. Esta visão não tem fundamento nas obras de Freud. Para Freud, há uma unidade profunda entre o método e a doutrina psicanalítica, não somente no sentido individual, mas no sentido universal. Isto é, como se diz no próprio Totem e Tabu: «O que se passa ao nível universal na evolução da humanidade se passa a nível particular no indivíduo». O método psicanalítico seria uma forma pela qual o indivíduo lograria o estado superior da evolução da humanidade, isto é, é um método que, através das imagens que representam a força vital (nos sonhos, etc.) e através de um método racional (associação livre, etc.), pretende reproduzir, da maneira mais elaborada possível, o “estado superior” da cultura da humanidade, que é a “sabedoria” (que poderíamos denominar como filosófica) pelo qual o homem se sente, se pensa, se considera e se autoconstitui como centro da realidade. O método psicanalítico, que consiste em coisas como a elaboração de uma rebelião contra o pai ao mesmo tempo em que se o ama, é uma espécie de disposição para alcançar o que se realiza perfeitamente no Cristo inventado por Freud, e que não é outra coisa senão o super-homem de Nietzsche. Em outras palavras: é uma espécie de disposição para captar o sentido profundo da eucaristia, que não é outra coisa que a celebração do pecado original, isto é, a assimilação consciente do pecado original, deixando de lado o sentimento de culpa. Mais precisamente ainda, Freud quer substituir a Confissão pela psicanálise e os sacerdotes pelos psicanalistas. Assim como a confissão prepara para a Eucaristia, a psicanálise prepara o homicídio de Deus e a autocelebração orgulhosa do homem: é quase um falso sacramento. Um falso sacramento que quer introduzir uma “mística” diabólica em vez da verdadeira mística, que é a Eucarística, contemplação de Cristo. Esta mística diabólica produz, ao mesmo tempo, a rebelião contra Deus, a autoafirmação do homem e a autodissolução do homem, pois a rebelião contra Deus não é outra coisa senão a autodestruição. Dito teologicamente: a psicanálise prepara a mente para o influxo diabólico, para a desintegração da personalidade e para a assimilação dessa personalidade por uma força destrutiva que não é outra coisa senão a força diabólica.


Conferência do Pbro. Dr. Ignacio Andereggen sobre a relação entre "Moral e Religião em Freud", realizada em 28 de Agosto de 2009 no Multiespacio Cultural EL CAMINO (Mar del Plata, Argentina) e organizada pela associação Fraternidad de Vida Nueva.

Áudio da conferência: https://gloria.tv/post/2rFZALMYFtDB6rQuA9BDFhwG9