Publicado por Rhuan M. E. Honório, psicólogo clínico / rhuanhonorio.com.br
P. Ignacio Andereggen
Tradução: Rhuan M. E. Honório
Vocês poderiam se perguntar por que
um autor de um livro sobre espiritualidade (e que escreve acerca de Santo Tomás)
estuda Freud. Creio que a resposta se encontra facilmente se observamos o clima
cultural que nos rodeia, e se observa também na vida de muita gente. Todos
sabemos que, na argentina, é comum recorrer aos psicólogos para resolver a
todos os tipos de problemas, principalmente os problemas mais profundos. Mas os
problemas mais profundos são justamente os problemas espirituais. Por isso, não
é incoerente que alguém que trata acerca da espiritualidade se ocupe da figura
de Freud, porque Freud elabora uma doutrina que alcança diretamente o nível
espiritual. Mas em que sentido o veremos? Para dar uma resposta coerente,
contundente e profunda aos problemas que encaramos no mundo contemporâneo, é
necessário resolver, do ponto de vista teórico, os problemas encontrados nas
filosofias e nos pensamentos dominantes na cultura contemporânea. Todos sabemos
que Freud, nesse sentido, é um autor principal.
É muito difícil que, no mundo
contemporâneo, um homem não conheça Freud e, ao menos genericamente, sua
psicanálise. Também é muito difícil que, no nosso ambiente, não encontremos
pessoas que foram determinadas por este tipo de pensamento, inclusive pessoas
que foram submetidas a psicoterapias freudianas. Por outro lado, o influxo
cultural de Freud é muito amplo e não se reduz ao âmbito da Psicologia. Há
razões intrínsecas para isto: Freud não pretendia construir uma doutrina
meramente psicológica, mas propor uma completa “filosofia de vida”, isto é,
queria dar uma explicação profunda, o que é próprio da Filosofia, aos fenômenos
humanos mais importantes, quer no nível individual, quer no nível social. Freud
queria explicar a origem da moral, a origem da cultura, a origem da religião, a
origem da Filosofia. Estas explicações não se reduzem, portanto, ao âmbito
prático-terapêutico, senão que são explicações teóricas, que pretendem ir aos
fundamentos da vida humana, isto é, ao que constitui a vida humana como tal.
Freud viveu entre o século XIX e o
século XX. De alguma maneira, Freud é uma ponte entre as características
culturais daquele e deste século. No século XIX, Freud assimilou especialmente
o pensamento cientificista, principalmente a concepção evolucionista de Darwin.
Por outro lado, assimilou, desde o ponto de vista filosófico, o ponto de
chegada e de dissolução do idealismo alemão, que se encontra especialmente na
filosofia de Nietzsche. Freud está profundamente influenciado por Nietzsche.
Por outra parte, encontramos em Freud o influxo de David Friedrich Strauss, que
é um autor de derivação hegeliana. Além disso, Freud foi aluno de um famoso
filósofo que se chamava Franz Brentano, padre dominicano que abandonou o
sacerdócio e a vida religiosa. Freud se impressionou profundamente com as
explicações filosóficas de Brentano. Portanto, nos encontramos diante de um
autor que apresenta a confluência de múltiplas formas de conhecimento,
determinadas pelo clima cultural da época. Por outro lado, Freud recebe
diretamente o influxo da filosofia kantiana, que é anterior ao século XIX. Para
entender Freud, é fundamental conhecer a doutrina de Kant.
Em Freud, encontramos uma elaboração
(filosófica) de certos dados que têm um ponto de apoio nas teorias da ciência
próprias do século XIX, mas que não se reduzem simplesmente ao âmbito da
ciência positiva, nem da medicina, e nem sequer da Psicologia. Freud pretende
explicitamente construir uma doutrina que não é meramente psicológica, mas que
abarca o sentido da vida humana em sua última profundidade. A doutrina de Freud
é muito complexa, mas podemos abordá-la a partir de uma obra que apresenta
diretamente o tema que queremos tratar nessa reflexão: a relação entre a moral
e a religião. A obra de Freud mais importante, determinante e influente no
tempo posterior se denomina Totem e Tabu, de 1912, praticamente dez anos
depois que Freud publicara sua primeira grande obra teórica, A interpretação
dos sonhos. Esse livro de 1912 trata diretamente dos problemas mais
profundos da vida humana. Eis o nome completo da obra: Totem e Tabu:
Alguns pontos de concordância entre a vida mental dos selvagens
e dos neuróticos. Os neuróticos do mundo contemporâneo a Freud, isto é, os
neuróticos sofisticados da cultura centro-europeia (que tinha seu centro em
Viena, onde vivia Freud) reproduziriam, de uma maneira restrita, um passo da
evolução geral da vida, desde a animalidade até a humanidade, no mesmo sentido
que havia explicado Darwin. Segundo Freud, observando um neurótico atual,
entenderíamos como, no aspecto anímico, se deu a passagem da evolução do animal
ao homem. Considerando a evolução, entenderíamos melhor o que significa ser
neurótico na atualidade.
Vejamos
um texto tomado diretamente do prólogo de Totem e Tabu: «Os dois temas
principais que dão nome a este pequeno livro, o totem e o tabu,
não estão tratados de maneira igual. A análise do tabu se apresenta como
um ensaio de solução acabado e certo, que esgota o problema. A indagação sobre
o totemismo, por sua vez, se limita a declarar aquilo que a abordagem
psicanalítica é capaz de aportar no momento, a fim de esclarecer os problemas
relativos ao totem. Essa diferença se deve ao fato de que o tabu segue
existindo entre nós. Ainda que expresso de uma forma negativa e dirigido a
conteúdos diferente, não é outra coisa, por sua natureza psicológica, que o imperativo
categórico de Kant, que opera de uma maneira compulsiva e desautoriza
qualquer motivação consciente. O totemismo, por sua vez, é uma
instituição religiosa e social alheia ao nosso sentido atual, e que, na
realidade, caducou há muito tempo e foi substituída por novas formas.» O totem,
para Freud, significa a religiosidade. Nessa obra, Freud pretende demonstrar
que a origem da religião tem seu princípio em uma espécie de horda primitiva de
homens que mataram seu pai para ficar com todas as mulheres dele. Quando os
homens primitivos fizeram isto, o celebraram realizando um banquete. A este
banquete, Freud dá o nome de “banquete totêmico”, porque a figura do pai é
representada nesse banquete por meio de um totem, uma espécie de estátua
primitiva que significaria o pai, e especialmente o órgão sexual deste pai.
Isto seria, de acordo com Freud, a origem de toda a religiosidade posterior.
Para Freud, como veremos em seguida, toda a religiosidade tem por sentido
celebrar o pecado original destes irmãos primitivos. Este pecado original é
constitutivo da vida social destes irmãos, e também constitutivo da vida individual.
E isso até chegar ao cristianismo, no qual, ainda de acordo com Freud, se
celebra, de uma maneira consciente, o pecado original em toda a sua extensão. O
pecado original que, para ele, não é outra coisa que não matar a Deus e se
colocar no lugar de Deus. Para Freud, Cristo é aquele que mata a Deus e se põe
no lugar de Deus, e a eucaristia é a celebração do pecado original representado
em Cristo, pelo qual a humanidade se constitui e pelo qual o individuo cobra
sua própria individualidade, por oposição ao pai.
O
tabu é a proibição. Freud toma o tema do tabu dos estudos antropológicos
da sua época. Nesse livro, por exemplo, começa tratando acerca dos aborígenes
australianos. Para Freud, todos os povos primitivos teriam características
psíquicas similares que perduram em estados posteriores da evolução humana. Os
neuróticos atuais seriam aqueles homens nos quais aparece, de uma maneira
reduzida e restrita, aquilo que se deu na evolução anterior da humanidade.
Assim, o neurótico seria uma pessoa que não evoluiu completamente e que,
portanto, apresenta algum aspecto primitivo na sua personalidade. Para Freud, a
neurose não é alheia à vida normal. Pelo contrário, a vida normal está
constituída pela neurose, mas elaborada em um universo superior, segundo um
fenômeno denominado sublimação, que seria a base de todos os fenômenos sociais
e culturais, e que seria, radicalmente, a base da elaboração mental que
constitui a razão. A razão, segundo Freud, não é outra coisa que não o fruto de
uma neurose elaborada, porque a neurose não é considerada por ele como algo
merecedor de um juízo moral negativo, mas como uma luta de forças que constitui
o humano enquanto tal.
Diz
Freud que o tabu perdura até os nossos dias: isto significa que a moral
dos povos civilizados (que para Freud são os cristãos europeus de sua época),
fruto de proibições impostas no princípio da evolução da humanidade, perdura.
Essas proibições teriam um sentido aparentemente mais racional que a
religiosidade, e constituiriam a base da racionalidade. Tomando o vocabulário
de uma época posterior do pensamento de Freud, poderíamos dizer que o tabu
corresponde à elaboração do ego, e o totem corresponde ao id,
que é o fundo de onde surgem todas as forças psíquicas. O tabu corresponde
ao ego, como dissemos, e o ego é uma espécie de desdobramento
psíquico do id, que é a fonte de todo o psiquismo, como que continuando
a evolução da vida, que é considerada por Freud de uma maneira única.
Recordemos que não há pensamento metafísico em Freud, porque Freud é kantiano,
e Kant elimina a metafísica, ao menos como a consideramos segundo a tradição,
isto é, como ciência que alcança o imaterial, que alcança a substância, como
dizia Aristóteles. Para Freud, não há substância particular, não há entes que
sejam constituídos pelo ser no sentido profundo. Para Freud, todo o bem da vida
e a própria vida não são outra coisa que não uma elaboração da matéria. O totem,
então, representa a vida que brota desde baixo, e o tabu representa uma
força que se manifesta como racionalidade, mas é contrária à vida. Esta força,
no entanto, brota da própria vida: a vida é contraditória, portanto. Com isso,
Freud formula (e o encontramos na mesma obra, Totem e Tabu) a lei
fundamental da vida psíquica, que é a ambivalência, e isso quer dizer que um
fenômeno psíquico significa algo e ao mesmo tempo significa o oposto. O amor
implica o ódio. Para Freud, sendo assim, a concepção de tabu (que
corresponde à moralidade), nos povos civilizados, não é outra coisa que não o
imperativo categórico de Kant, isto é, que a moral deve ser entendida da mesma
maneira que Kant a entendeu. A moral na psicanálise é a moral kantiana. Mas
Freud pretende superar a moral kantiana, porque a considera unilateral e
repressiva, e a verdadeira moral não guardaria a vida, mas permitiria o “livre”
jogo entre o fluir da vida e a força racional contrária. Este “livre” jogo (que
na realidade não é livre, pois Freud segue a Schopenhauer e não considera que a
vontade seja livre) é como uma imitação da liberdade, possibilitada pela
oposição entre a racionalidade e os instintos que surgem do fundo da vida
material. É deste choque que a psicanálise se ocupa e, mais ainda, trata de
favorecê-lo, institucionalizá-lo e convertê-lo, de maneira sofisticada e
elaborada, no mais profundo que há na vida humana. Dito com outras palavras: se
trata de reelaborar a neurose não para que deixe de ser neurose, mas para que
seja uma neurose superior, compreendida, assimilada e favorecida. Freud realiza
este “projeto” como toda a sua doutrina, e é por isso que diz em algumas obras
que é preciso ser uma pessoa normal para ser “psicanalisada”. Uma pessoa
enferma psiquicamente não poderia ser “psicanalisada”, pois seria preciso ser
uma pessoa com um certo equilíbrio e um certo sentido da moralidade. Tudo isto
implica dizer que a psicanálise não é fundamentalmente um método terapêutico,
mas uma espécie de sabedoria que substitui a metafísica, que é a sabedoria no
sentido tradicional, desde Aristóteles e Platão. A psicanálise seria uma
interpretação total da vida e da realidade, e por isso corresponde a uma
espécie de falsa espiritualidade, pois espiritualidade inclui não só a
Teologia, mas também a Filosofia. É certo que Freud não é religioso, mas
somente um estudioso, do seu próprio modo, da religião, e por isso,
propriamente falando, não há Teologia em Freud, mas somente uma filosofia.
Totem
e Tabu foi rapidamente traduzido ao hebraico. Freud era
judeu e recebeu uma educação religiosa de seu pai, mas também recebeu todo o
influxo positivista e iluminista do século XIX. Diz o prólogo à edição
hebraica: «Nenhum dos leitores deste livro poderá colocar-se com facilidade na
situação afetiva do autor, que não compreende a língua sagrada e está
completamente alheio à religião paterna – e a qualquer outra religião –; que
não pode simpatizar com ideais nacionalistas, mas nunca desmentiu o
pertencimento a seu povo, pois sente que sua peculiaridade é de judeu e não
deseja mudá-la [Isto é, Freud se proclama judeu apesar de negar esta e qualquer
outra religião]. Se lhe perguntassem: “Mas o que ainda há de judeu em ti se
renunciaste a todas essas relações de comunidade com teus com compatriotas?”,
ele responderia: “Muita coisa ainda, provavelmente o principal” [Esta é uma
resposta misteriosa. O que é o principal de ser judeu? Para ele não é a
religião, pois ele já a abandonou e é ateu]. Mas, no momento, ele não poderia
formular essa característica essencial com palavras claras. Mais tarde,
certamente haverá uma ocasião em que ela será acessível à compreensão
científica. Assim, para tal autor, constitui uma experiência particularíssima
que seu livro seja traduzido para a língua hebraica e colocado nas mãos de
leitores para os quais esse idioma histórico é uma língua viva. Um livro que,
além disso, trata da origem da religião e da moralidade, mas que não conhece
nenhum ponto de vista judaico, não faz nenhuma restrição em favor do judaísmo.
Mas o autor espera coincidir com seus leitores na convicção de que a ciência
sem preconceitos não pode permanecer estranha ao espírito do novo judaísmo».
Que é este novo judaísmo? Para Freud, há uma religião judaica que deve ser
abandonada. Em relação à religião judaica tradicional, Freud afirma que o
cristianismo é superior [de acordo com o critério que diremos em seguida]. Ao
final de sua produção, em 1939, publicou um livro chamado Moisés e a
religião monoteísta, no qual há a mesma doutrina dita acima. Que é o
próprio do povo judeu para Freud? É próprio do povo judeu sentir culpa por ter
matado a Deus. E o próprio do povo cristão, ainda segundo Freud, é que não
sinta culpa por ter matado a Deus, pelo contrário, que se sinta orgulhoso de
ter matado a Deus e de ter se colocado no lugar dele. Isto é o que Cristo fez,
de acordo com Freud. Lê-se ao final de Totem e Tabu: «Não pode haver
dúvida de que no mito cristão o pecado original foi um pecado cometido contra o
Deus-Pai. Se, entretanto, Cristo redimiu a humanidade do peso do pecado
original pelo sacrifício da própria vida, somos levados a concluir que o pecado
foi um homicídio. A lei de talião, que se acha tão profundamente enraizada nos
sentimentos humanos, estabelece que um homicídio só pode ser expiado pelo
sacrifício de outra vida: o auto-sacrifício aponta para a culpa sanguínea. E se
este sacrifício de uma vida ocasionou uma expiação para com o Deus-Pai, o crime
a ser expiado só pode ter sido o homicídio do pai». Aqui, encontramos um ponto
de apoio fundamental para entender o essencial da doutrina freudiana: Cristo é
o super-homem, e representa o mais evoluído da humanidade, isto é, aquele super-homem
de Nietzsche. Em que se constitui o super-homem? O super-homem se constitui
pela autoafirmação, isto é, por aquilo que cristianamente chamaríamos
soberba. Para Nietzsche, que inspira secretamente a Freud, o homem é homem
quando se autoafirma, e se autoafirma às custas dos demais: isto é a essência
da (nova) moral, segundo Nietzsche. Isto é a inversão do cristianismo: se o
cristianismo diz “felizes os que choram, os pobres, os que têm fome e sede de
justiça”, Nietzsche diz que isto é a moral dos escravos, não a moral dos homens
livres, dos nobres, dos guerreiros, dos que se impõem. Freud assimilou a
doutrina nietzschiana e fez dela o centro de sua própria doutrina acerca da
evolução psíquica: a evolução psíquica seria autoafirmar-se, separando-se daquele
que lhe tira a liberdade, que é o pai. O complexo de Édipo é o ódio do
pai que acontece ao mesmo tempo em que se o ama. Cristo, para Freud, é o homem
que superou o complexo de Édipo por excelência, separando do Pai por
excelência, que é Deus. Por isso, no método psicanalítico, a referência ao pai
em uma pessoa individual é, no fundo, uma referência a Deus, e separar-se do
pai é separar-se de Deus, ao mesmo tempo em que se o ama.
O
método hermenêutico de Freud, para aquele que conhece as sagradas escrituras, é
muito estranho: Freud interpreta o novo testamento segundo o antigo testamento,
e o antigo testamento segundo a lei de talião. Isto é, inverte a ordem
autêntica da revelação, porque o antigo testamento foi revelado por Deus
justamente como superação da falta de justiça da lei de talião, e o novo
testamento é a lei da graça, é a lei do amor, que supera o antigo testamento.
Para Freud, a vida de Cristo deve ser interpretada ao contrário, pela lei de
talião. Para entender o que fez Cristo quando morreu na cruz, deveríamos
aplicar a lei de talião, o que implicaria dizer que Cristo se satisfez pela
morte (assassinato) do Pai, e só poderia fazê-lo suicidando-se. De acordo com
Freud, Cristo se fez Deus e ideal da humanidade quando se suicidou, porque, a partir
disso, Cristo teria se reconciliado com Deus.
Evidentemente,
tudo isso é uma completa distorção do pensamento e da revelação cristã e, mais
ainda, é uma distorção diabólica, pois apresenta todas as características do
espírito diabólico: é o sentido da mentira. Cada afirmação das sagradas
escrituras está deturpada e colocada em uma ordem lógica pervertida. Deduzir
que a morte foi suicídio é uma perversão; deduzir que a morte de Cristo foi um
roubo do lugar de Deus é uma perversão, etc. Constituir o “assassinado do Pai”
como centro da doutrina cristã é a perversão fundamental. Para Freud, todo o
cristianismo, que é o ponto superior da evolução da humanidade, é a reproposição
consciente do assassinato do Pai. Por isso, prossegue Freud: «Na doutrina cristã,
assim, a humanidade estava reconhecendo da maneira mais indisfarçada o ato
primeiro culpado, uma vez que encontraram a mais plena expiação para ele no
sacrifício desse filho único». Isto é, a doutrina cristã seria a confissão
orgulhosa e consciente do pecado original, e o cristianismo seria a atualização
do pecado original, que seria a sanha que constituiria a humanidade, ao longo
do tempo. Esse pecado original se daria de uma maneira primitiva [a horda
primitiva proposta por Freud] e de uma maneira elaborada na civilização
contemporânea: isso seria o núcleo da civilização contemporânea.
A
reconciliação com o pai seria muito mais radical, porque, de maneira
simultânea, este sacrifício produziria a total renúncia à mulher, que seria a
causa da sublevação contra o pai. Para Freud, os homens primitivos tiveram uma
motivação inferior para assassinar o pai, e esta motivação foi ficar com as
mulheres do pai. Esta motivação seria inferior porque, para Freud, a mulher
representa um estado inferior da evolução. Em que Freud estava pensando? Freud
estava pensando nos sacerdotes católicos, que não se casam. Freud disse
diversas vezes que tinha bom motivos para não casar-se. Cristo é identificado
com o sacerdócio, porque o sacerdote representa a Cristo. Cristo teria matado o
Pai, roubando seu lugar, sem necessidade das mulheres. E Freud o dizia de uma
maneira meramente “racional”, não por um motivo inferior, como é o desejo
sexual. Nesse ponto, a fatalidade psicológica da ambivalência reclama seus
direitos. Vimos que a lei fundamental da vida humana, para Freud, é a ambivalência,
que representa esta contradição fundamental. No ato mesmo de oferecer ao Pai a
maior expiação possível, o Filho também alcança a meta de seus desejos contra o
próprio Pai. Ele mesmo se tornaria Deus no lugar do Pai. Isto é, Cristo teria
se colocado no lugar de Deus. Para Freud, a religião do Filho subjuga a
religião do Pai. Vimos no princípio desse livro que Freud chamava a religião
judaica de religião paterna: a religião do Pai seria a religião judaica, e a
religião do Filho seria o cristianismo, isto é, a religião judaica tradicional
seria uma religião inferior ao cristianismo, porque é uma religião na qual se
sente culpa por se ter matado a Deus. Os cristãos teriam matado a Deus e não
sentiriam culpa por isso, porque o cristianismo, em sua essência, seria a
religião do homem que se faz Deus. Para Freud, o cristianismo não teria um
sentido sobrenatural e não teria um sentido de culto divino, reconhecendo a
Deus como criador de todas as coisas, senão que teria um sentido de aperfeiçoar
a dignidade de homem, que é o que se veria, por excelência em Cristo. O
cristianismo, portanto, teria substituído o judaísmo, e o antigo banquete
totêmico teria sido reanimado como comunhão. Agora, os irmãos consumiriam a
carne e o sangue do Filho. Já não haveria Pai. Os irmãos se santificariam pelo
consumo e se identificariam com o Pai. Segundo Freud, a celebração da missa
seria a atualização do assassinato do pai e do banquete que, pelo assassinato
do pai, a horda de homens primitivos celebrou. A visão de Freud identificava o
banquete totêmico com o sacrifício animal, com o sacrifício divino e com a
Eucaristia cristã. Para Freud, todas as religiões fariam a mesmo. As religiões
teriam uma ordem evolutiva: primeiro, fazia um banquete totêmico; depois,
sacrificavam animais; depois, matavam um homem; e depois, celebrariam a
eucaristia. De acordo com Freud, tudo isso é a mesma coisa e há uma identidade em
todas as formas de religiosidade. Em todas essas cerimônias solenes há o efeito
continuado daquele crime. Isto é, para Freud, a religião tem um sentido
escondido, um sentido que poderíamos denominar místico [místico no sentido de
“oculto”, “escondido”, diabólico, não místico no sentido da autêntica mística
cristã]: a religiosidade se transforma em uma espécie de religião diabólica,
que é a religião do homicídio, do ódio, que é o que está escondido como mais
profundo e constitutivo da vida psíquica, porque a evolução, da animalidade à
plena humanidade, se constitui justamente por esta força negativa que se opõe à
vida e surge, ao mesmo tempo, da vida. Esta força negativa teria formas cada
vez mais sofisticadas, que teriam seu ponto culminante na racionalidade que se
expressa nas distintas formas da vida cultural. Por isso, se por uma parte a
moral, entendida no sentido kantiano, é aquilo que está mais imediatamente
presente nas civilizações e que as constitui, por outro lado, por trás da
moral, há uma força misteriosa [demoníaca], que é o que dá força à moral. A
força moral dependeria da força da “religião”, que se expressaria como negação,
como homicídio, como pecado, como soberba, como orgulho. O pecado seria motivo
de orgulho, não de culpa.
Como se coloca o método psicanalítico frente a esta explicação? Há diversos modos de entender esta relação que não captam adequadamente sua profunda unidade. Por exemplo: classicamente, encontramos a doutrina de Roland Dalbiez em O método psicanalítico e a doutrina freudiana, que consiste em dizer que o método psicanalítico tem sua eficácia e deve ser separado da doutrina mentirosa de Freud [separação de método e doutrina]. Maritain disse algo semelhante em suas conferências na Argentina. Estes propunham que os delírios e os disparates da doutrina filosófica fossem deixados de lado e que o método fosse assumido. Esta visão não tem fundamento nas obras de Freud. Para Freud, há uma unidade profunda entre o método e a doutrina psicanalítica, não somente no sentido individual, mas no sentido universal. Isto é, como se diz no próprio Totem e Tabu: «O que se passa ao nível universal na evolução da humanidade se passa a nível particular no indivíduo». O método psicanalítico seria uma forma pela qual o indivíduo lograria o estado superior da evolução da humanidade, isto é, é um método que, através das imagens que representam a força vital (nos sonhos, etc.) e através de um método racional (associação livre, etc.), pretende reproduzir, da maneira mais elaborada possível, o “estado superior” da cultura da humanidade, que é a “sabedoria” (que poderíamos denominar como filosófica) pelo qual o homem se sente, se pensa, se considera e se autoconstitui como centro da realidade. O método psicanalítico, que consiste em coisas como a elaboração de uma rebelião contra o pai ao mesmo tempo em que se o ama, é uma espécie de disposição para alcançar o que se realiza perfeitamente no Cristo inventado por Freud, e que não é outra coisa senão o super-homem de Nietzsche. Em outras palavras: é uma espécie de disposição para captar o sentido profundo da eucaristia, que não é outra coisa que a celebração do pecado original, isto é, a assimilação consciente do pecado original, deixando de lado o sentimento de culpa. Mais precisamente ainda, Freud quer substituir a Confissão pela psicanálise e os sacerdotes pelos psicanalistas. Assim como a confissão prepara para a Eucaristia, a psicanálise prepara o homicídio de Deus e a autocelebração orgulhosa do homem: é quase um falso sacramento. Um falso sacramento que quer introduzir uma “mística” diabólica em vez da verdadeira mística, que é a Eucarística, contemplação de Cristo. Esta mística diabólica produz, ao mesmo tempo, a rebelião contra Deus, a autoafirmação do homem e a autodissolução do homem, pois a rebelião contra Deus não é outra coisa senão a autodestruição. Dito teologicamente: a psicanálise prepara a mente para o influxo diabólico, para a desintegração da personalidade e para a assimilação dessa personalidade por uma força destrutiva que não é outra coisa senão a força diabólica.
Conferência
do Pbro. Dr. Ignacio Andereggen sobre a relação entre "Moral e Religião em
Freud", realizada em 28 de Agosto de 2009 no Multiespacio Cultural EL
CAMINO (Mar del Plata, Argentina) e organizada pela associação Fraternidad
de Vida Nueva.
Áudio
da conferência: https://gloria.tv/post/2rFZALMYFtDB6rQuA9BDFhwG9
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